Se você circula
regularmente pelas redes sociais, já deve ter visto algum de seus contatos compartilhar
posts aconselhando às pessoas que cuidem das suas próprias vidas. Frases de
efeito acompanhadas de imagens engraçadinhas do tipo: “Deus deu a vida para
cada um cuidar da sua”, “Pra você que toma conta da minha vida, as contas desse
mês já chegaram” e outras que tais. É fato que as redes sociais se tornaram um
excelente veículo de informação sobre a vida dos outros. Mas, se você concordou
em tornar a sua vida pública, colocando nas redes sociais os mínimos detalhes
da sua rotina (desde o cardápio do seu almoço até a cor da sua calcinha do dia),
e fazendo questão de alardear o quanto é feliz e o quanto a sua vida é
maravilhosa, não deveria reclamar de que as pessoas tomem conta da sua vida, não
é mesmo? Principalmente se você faz isso justamente para gerar inveja em
determinadas pessoas. Há uma solução muito fácil para esse “problema” nas
configurações de privacidade de qualquer rede social.
Outro fenômeno da mesma natureza que se popularizou nos últimos meses foi o uso indiscriminado do termo “recalque”. Um uso que não tem nada a ver, por exemplo, com a forma como Freud conceituou o termo. Segundo o médico austríaco, o recalque ou recalcamento é um processo psíquico no qual o sujeito rejeita ideias ou lembranças que não aceita, enviando-os para o inconsciente como forma de evitar conflitos que poderiam gerar angústias. O conceito é um dos fundamentos da psicanálise, criada por Freud. Nas redes sociais, o termo perde a sua complexidade e é utilizado apenas como (mais um) sinônimo para inveja. Porém, a impressão que me passa é que qualquer opinião divergente é qualificada como “recalque”: Se eu não concordo com o resultado de uma partida de futebol é recalque porque meu time perdeu; se eu não concordo com o resultado do desfile das Escolas de Samba, da mesma forma, é recalque porque minha agremiação ficou em 10º lugar; se eu não concordo com o comportamento de determinada pessoa é recalque porque na verdade eu queria ser como ela; se eu não gosto de determinada música, ou comida, ou cor, ou o que quer que seja, é recalque porque... porque é recalque e pronto!
Dois exemplos
de músicas que estão estouradas nas rádios também tomam a inveja como seu tema
principal. A primeira é o Show das Poderosas, interpretada pela “cantora”
Anitta. A letra, que não é muito longa, parece não fazer muito sentido quando
analisada à luz da lógica argumentativa. Mas com um pouco de esforço é possível
pegar a sua ideia central. Não é nada mais do que um autoelogio, onde a autora
diz que atrai inveja pela sua maestria na dança. Segundo ela, o baile para para
vê-la dançando e as invejosas ficam “babando” e ao mesmo tempo humilhadas por
serem expulsas (do baile? Da pista? Não fica claro). O segundo exemplo é a
música Beijinho no Ombro, interpretada pela “cantora” Valesca Popozuda. Na
letra, a autora afirma que tem não apenas invejosas, mas “inimigas”! A quem ela
deseja vida longa para que possam assistir a sua vitória (em tempo, essa é uma
frase antiga, dita por alguma personalidade histórica que eu não consegui
descobrir quem é devido à multiplicidade de referências a ela que se encontra
hoje na internet por culpa da popularidade da própria música). Ao longo da
letra, as “inimigas” da autora são chamadas também de invejosas, recalcadas,
cachorras e piriguetes. Para arrematar com um pouco de violência, a autora
ainda chama os seus desafetos para um acerto de contas (“Bateu de frente é só
tiro, porrada e bomba”).
Se pensarmos
nas redes sociais como um retrato da sociedade, chegaremos à conclusão que
vivemos em uma sociedade formada por pessoas infelizes e frustradas, que passam
boa parte do seu tempo tomando conta da vida dos outros e esquecendo a sua
própria. Não estou negando que haja esse tipo de pessoas. Mas, se prestarmos
bastante atenção aos discursos anti-inveja, perceberemos que são em sua imensa
maioria discursos auto-referenciais, onde aquele que reclama de ser invejado
tem a certeza de ser o centro das preocupações de outras pessoas. Para ele, a
inveja daqueles que não têm ou não são aquilo que ele tem ou é se torna uma
preocupação constante que pode chegar às raias da obsessão. O que,
curiosamente, acaba por inverter as posições. Porque se você está muito
preocupado com o que uma pessoa pensa de você ou fala sobre você, significa que
é você que na verdade está tomando conta da vida dessa outra pessoa. Há por
parte dessas pessoas a expressão de um sentimento de superioridade que talvez
seja tão ou mais nocivo para a vida em sociedade do que a própria inveja. Essa
sensação de ser constantemente perseguido pela inveja, de ter sempre alguém
tomando conta da sua vida, me parece a expressão de uma personalidade profundamente
egocêntrica. Onde as pessoas fazem um conceito tão alto de si próprias que
chegam a achar que o passatempo predileto de outras pessoas é invejá-las. É o
que popularmente se chama de “umbiguismo”. Essas pessoas tem a certeza de que o
universo gira ao seu redor. Todos querem ser como ela, ter o que ela
conquistou. E o que ela é ou o que ela conquistou, muitas vezes, não passa de
ilusões criadas por esse mesmo egocentrismo, assim como ilusória é a inveja que
ela desperta. Essas pessoas só conseguem enxergar as outras como uma ameaça ou
como o inimigo, de quem elas fingem querer distância. Fingem sim, porque na
verdade o sentimento de ser invejado alimenta o seu egocentrismo. E, por isso, elas
não tomam a simples medida de alterar as configurações de privacidade das suas
redes sociais, afastando olhares indesejados da sua felicidade.
Dessa forma, pela
quantidade de vezes que vejo postagens anti-inveja nas redes sociais e pelo
sucesso de músicas como as duas que eu citei, eu tenho a sensação bastante
palpável de que vivemos hoje não em uma sociedade de pessoas frustradas e
invejosas, mas em uma sociedade de pessoas profundamente autocentradas e egocêntricas.
O que pode ser muito pior. Não tenha medo de sentir inveja. Se bem trabalhada, a
inveja pode servir como estímulo para alcançar grandes realizações. Mas tenha
muito medo de ser egocêntrico, de achar que o mundo gira em torno de você. Que
o baile para só pra te ver dançando.
Interessante os apontamentos de Freud...rs
ResponderExcluirSempre bom aprender